Terça, 17 Janeiro 2023 14:04

Escassez de mão de obra impõe avanço do “agro remoto”

Avalie este item
(0 votos)

Para consultora, setor precisa flexibilizar o trabalho presencial para atrair talentos de tecnologia

 

A escassez de mão de obra qualificada na área de tecnologia afeta todos os setores da economia brasileira, mas o problema é particularmente desafiador para companhias do agronegócio: elas não só disputam profissionais com empresas de outros segmentos como, em muitos casos, precisam também atrair pessoas que aceitem deixar os grandes centros para trabalhar em polos econômicos do interior do país. A concorrência pelos melhores talentos pode exigir que as companhias do agro abram mão do modelo que prioriza o trabalho presencial.

 

“A falta de mão de obra vai continuar. Não dá tempo de formar gente suficiente. A demanda nos grandes centros é grande, e os profissionais preferem ficar nas cidades”, diz Camila Marion, sócia da consultoria EXEC, que atua como caça-talentos para o setor há 15 anos. Segundo ela, os profissionais têm pedido salários até 30% maiores que os que as companhias oferecem quando a vaga exige mudança para o interior do país.

 

A Perfect Flight, startup que utiliza inteligência computacional para aprimorar a pulverização aérea de insumos agrícolas, sente essa defasagem de profissionais de tecnologia no campo. “Vemos mais profissionais do agro se especializando em tecnologia, mas muito poucos profissionais de TI veem o agro como uma grande oportunidade”, disse a empresa ao Valor, em nota.

 

A constatação da agtech apareceu já na pesquisa “Profissões Emergentes na Era Digital: Oportunidades e desafios na qualificação profissional para uma recuperação verde”, de 2021, encabeçada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). O estudo indica que o Brasil precisará de 75 mil engenheiros agrônomos especializados em tecnologia digital em 2030. Mas, no ritmo atual, o país terá, no máximo, 22,5 mil até lá.

 

Camila Marion, da EXEC, defende que, para atrair talentos, as empresas terão de abrir mão do modelo de trabalho presencial - se não em favor do remoto, pelo menos do híbrido. “As multinacionais e brasileiras mais estruturadas, com governança avançada, já entenderam que para ter profissionais diferentes terão de trabalhar de outra forma”, diz ela.

 

Para a consultora, empresas de gestão familiar resistem mais às mudanças. “No fundo, estamos falando de cultura, e mudança de cultura não é tão simples”, comenta. Parte dessa transformação envolve administrar resultados sem ter de acompanhar cada segundo do trabalho do funcionário.

 

Outra saída para as empresas do setor é cultivar talentos dentro de casa, defende a executiva. “Quando você forma técnicos e graduados, cria-se um vínculo, que gera gratidão. Isso elimina o risco de contratar alguém vindo da cidade, que não vai se adaptar à vida no campo”, explica.

 

O Grupo Bom Futuro, um gigante do agronegócio brasileiro, oferece cursos de administração com ênfase em informática e desenvolvimento de sistemas, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-MT) e o Serviço Nacional da Indústria (Senai). O projeto Aprendiz do Futuro dura dois anos e hoje envolve 50 jovens, que têm entre 18 e 24 anos.

 

Tiago Goecks, gerente de recursos humanos da Bom Futuro, afirma que a empresa precisa de mão de obra qualificada e tem condições de absorver os estudantes formados no Aprendiz do Futuro. “São mais de oito mil colaboradores em diversas unidades de produção e sabemos que as oportunidades não irão estagnar no setor”, diz, em nota.

 

A maioria das empresas do agronegócio trabalhava inovação de forma compartimentada. Agora, no entanto, elas têm criado departamentos que centralizam as decisões que ditarão o futuro do negócio. O problema é que muitas vezes há uma dificuldade de comunicação entre quem entende de agronegócio e os profissionais de tecnologia contratados.

 

“É por isso que o Fórum Econômico Mundial diz que as principais habilidades multifuncionais, que mesmo profissionais que não são de tecnologia precisarão ter, são marketing de conteúdo, marketing digital, conhecimento de ciclo de vida de desenvolvimento de software, ciência de dados, entre outros”, afirma Frederico Samartini, CEO da empresa de tecnologia YSSY.

 

Por serem posições novas, as companhias ainda testam salários. “Muitas vezes o que temos é que a empresa diz que não tem recursos para contratar determinado profissional, mas depois de uma entrevistas eles acabam mudando de ideia e investem um pouco mais para trazer a pessoa com quem se identificaram”, afirma Camila Marion.

 

Profissionais especializados, que conseguem se aprofundar no negócio, tendem a ser valorizados, segundo Samartini. Ele conta que já teve que colocar um analista de dados de São Paulo para analisar remotamente dados de chuva coletados em uma grande fazenda de Mato Grosso. “Ele não entendia do negócio, fazia a análise sem saber exatamente para que aquela informação de chuva servia”, comenta.

 

Dentre os benefícios esperados profissionais, há alguns “símbolos” dos tempos atuais: liberdade para “pensar fora da caixa” e coragem para implementar as mudanças. “As empresas perceberam que quando trazem alguém de fora é preciso dar espaço. Isso mudou muito nos últimos 15 anos”, diz. “Atuei na contratação de uma diretora de estratégia digital que teve todo o apoio, mesmo vindo de fora do agro. Ela se sentiu respaldada pela alta cúpula da empresa, quando alguns tentaram minar as ideias dizendo que não funcionaria. Faz muita diferença”.

 

Aos que vão ingressar no agro, Camila recomenda atenção às habilidades sociais. “É preciso resiliência, habilidade de influência, porque você será sempre testado, e agilidade para mostrar resultados.” Samartini alerta que a cultura de registrar resultados constantes, mesmo antes da conclusão do projeto, pode ser um desafio para quem vem da área de tecnologia sem entender do negócio.

 

Fonte: Valor Econômico